Marcos Labanca/ Gazeta do Povo
Brasil não tem delegacias, juizados e casas-lares em número suficiente para proteger as mulheres vítimas de violência
Vista
pela Organização das Nações Unidas (ONU) como uma legislação exemplar
no combate à violência contra a mulher, a Lei Maria da Penha esbarra em
dificuldades estruturais para ser aplicada na prática. A falta de
delegacias especializadas, juizados especiais e casas-abrigo comprometem
a eficácia da lei criada para proteger a mulher e punir os agressores.
Mesmo quando essas estruturas existem, os funcionários são em número
insuficiente e mal treinados.
Os dois principais desafios mapeados pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) sobre a Violência contra a Mulher, que deve vir ao Paraná no próximo dia 25, remetem justamente à falta de estrutura física e recursos humanos em dois órgãos essenciais para fazer valer a lei: as delegacias especiais de atendimento à mulher (Deam) e os juizados de violência doméstica.
Movimentos sociais de defesa da mulher acusam a Delegacia da Mulher de Curitiba de descumprir a Lei Maria da Penha. Entre os atos de omissão, a suposta exigência de flagrante para lavrar boletim de ocorrência (BO) e o pedido para que a mulher voltasse ao seu bairro de origem para fazer o BO na delegacia da região. A denúncia foi feita na semana passada à seção paranaense da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
“Temos notícia de que a delegacia se recusa a atender as mulheres e alega que, por falta de policiais, é preciso retornar à delegacia do bairro. Também são despreparados, perguntam à mulher várias vezes se ela tem certeza de que sofreu violência. É um constrangimento e uma nova violência contra a vítima”, diz Ludmilla Nascarella, conselheira da ONG Espaço Mulher. “Sem o BO, a mulher fica de mãos atadas, não consegue audiência no juizado para ter direito à medida protetiva, por exemplo.”
A delegada titular da delegacia, Maritza Haisi, nega os fatos e diz que a ordem é para que o servidor atenda toda vítima que procure o serviço. O problema, de acordo com ela, é que a delegacia não tem competência para investigar certos tipos de crime, como os de natureza patrimonial ou homicídios. “O decreto que criou a delegacia [da mulher] limitou a atuação dela, e, nesse caso, até fazemos o primeiro atendimento, mas o BO é encaminhado para a delegacia que trata daquele crime específico.”
A presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB, Sandra Lia Barwinski, diz que o fato de a delegacia ter sido criada por decreto em 1985, antes da Lei Maria da Penha (2006), realmente limita o seu poder de investigação, mas que é preciso esclarecer os servidores de que a autoridade policial tem a obrigação de receber toda e qualquer denúncia. (VP)
No
Brasil, menos de 10% dos municípios têm uma Deam e as que estão em
funcionamento não têm policiais suficientes para atender as vítimas e
investigar os casos. O Paraná é um exemplo. Apenas 11 dos 399 municípios
do estado têm uma Deam, o que corresponde a 2,7% do total.
Na capital, a única delegacia especializada vive sobrecarregada desde que a lei foi aprovada, em 2006. Segundo a delegada titular, Maritza Haisi, naquele ano foram instaurados 127 inquéritos, com uma equipe de 18 servidores. Em 2011, o efetivo aumentou para 36 profissionais, mas o número de inquéritos subiu de forma exponencial: havia 8 mil em trâmite.
No caso dos juizados especiais, a situação é similar. Existem 60 deles em todo o país, dois no Paraná (Curitiba e Londrina), embora a demanda seja até dez vezes maior. Nestes locais são apreciados pedidos importantes, como o da medida protetiva, que impede o agressor de chegar perto da vítima. “Os investimentos são incompatíveis com a grandeza da lei”, analisa a médica legista Maria Letícia Fagundes, autora do Projeto MaisMarias, que esclarece a população a respeito da lei.
Ela lembra que outro mecanismo importante de combate à violência praticamente inexiste no estado: as casas-abrigo, para onde são encaminhadas as vítimas que correm risco de morte. Hoje, no Paraná, há apenas um local deste tipo na capital e cinco no interior. No Brasil, existem 70.
“É muito pouco. Cerca de 50% das mulheres correm risco de vida e não poderiam voltar para suas casas”, diz. O resultado é desanimador sob qualquer prisma: ou as mulheres denunciam, voltam para casa e apanham (ou são mortas), ou desistem de denunciar, pois sabem que terão de encarar o companheiro. Ambas as atitudes enfraquecem a tão comemorada lei. Segundo o Mapa da Violência 2012, divulgado no mês passado, 68% dos casos de agressão à mulher ocorrem dentro de casa.
Não existem estatísticas confiáveis
A falta de dados sobre a violência contra a mulher também preocupa as autoridades. Se hoje o Brasil resolvesse de fato o problema da falta de orçamento para o setor, ainda assim não saberia por onde começar, já que as estatísticas inexistem ou são pouco confiáveis. “Sabemos que o Paraná é o terceiro estado onde mais morrem mulheres, mas não sabemos quem são elas, se fizeram boletim de ocorrência, se procuraram o serviço de proteção da Justiça e se foram atendidas”, explica a deputada federal Rosane Ferreira (PV-PR), uma das integrantes da CPMI.
Esse vazio estatístico também é apontado pelo deputado federal Dr. Rosinha (PT-PR), outro membro da comissão, como o grande desafio do Brasil na área. O parlamentar sentiu pessoalmente tal dificuldade: ao pedir dados para a CPMI, ouviu dos estados que as informações inexistiam ou não estavam tabuladas e disponíveis. “Ainda não concluímos os trabalhos, mas já percebemos que há um total desaparelhamento do Estado para cumprir a lei com eficácia. No país todo”, avalia Rosinha.
No próximo dia 25, os parlamentares visitarão órgãos que integram a rede de proteção à mulher no Paraná, como a Secretaria de Estado da Segurança Pública e o Tribunal de Justiça, além da Assembleia Legislativa do Paraná.
OAB vai propor melhorias no atendimento
Até o dia 25, um grupo de estudos da OAB no estado, coordenado pela advogada Sandra Lia Barwinski, deverá colocar em votação uma série de medidas que visam ao aprimoramento da infraestrutura de atendimento à mulher no Paraná. Serão discutidas em torno de 20 propostas, e o objetivo é que pelo menos dez sejam encaminhadas à CPMI que trata do tema no Congresso. O documento pretende focar em particularidades enfrentadas pelo Paraná na área. A primeira, de acordo com Sandra, é a ausência de um centro de reeducação do agressor, uma medida elogiada mundo afora, mas que ainda não é realidade em Curitiba.
Hoje, há iniciativas isoladas, como a do juizado especial da capital, que oferece oficinas, palestras e encontros com psicólogos para os agressores, além de conversas entre o casal para tentar entender o que leva à violência. Nenhuma, no entanto, é política de Estado. “São iniciativas individuais, como a da juíza, mas não foram formalizadas, institucionalizadas”, diz a advogada.
Outra medida urgente é a estruturação da Defensoria Pública no estado, com a consequente criação de um núcleo de atendimento à mulher vítima de agressão. Hoje, cerca de 80% das vítimas são das classes C, D e E, negras ou pardas e sem escolaridade nem renda para contratar um advogado, o que demonstra a urgência de tal iniciativa.
Por fim, o órgão recomendará que seja criado um núcleo da OAB dentro das delegacias, com um advogado pago pelo Estado, e que esteja presente no local 24 horas por dia para prestar esclarecimento sobre a lei às vítimas, além da presença do delegado durante os plantões, algo que hoje não ocorre, por falta de efetivo.
Vanessa Prateano/ Foto: Marcos Labanca/Gazeta do Povo.
Os dois principais desafios mapeados pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) sobre a Violência contra a Mulher, que deve vir ao Paraná no próximo dia 25, remetem justamente à falta de estrutura física e recursos humanos em dois órgãos essenciais para fazer valer a lei: as delegacias especiais de atendimento à mulher (Deam) e os juizados de violência doméstica.
Acusação
Entidades de proteção à mulher denunciam delegacia de CuritibaMovimentos sociais de defesa da mulher acusam a Delegacia da Mulher de Curitiba de descumprir a Lei Maria da Penha. Entre os atos de omissão, a suposta exigência de flagrante para lavrar boletim de ocorrência (BO) e o pedido para que a mulher voltasse ao seu bairro de origem para fazer o BO na delegacia da região. A denúncia foi feita na semana passada à seção paranaense da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
“Temos notícia de que a delegacia se recusa a atender as mulheres e alega que, por falta de policiais, é preciso retornar à delegacia do bairro. Também são despreparados, perguntam à mulher várias vezes se ela tem certeza de que sofreu violência. É um constrangimento e uma nova violência contra a vítima”, diz Ludmilla Nascarella, conselheira da ONG Espaço Mulher. “Sem o BO, a mulher fica de mãos atadas, não consegue audiência no juizado para ter direito à medida protetiva, por exemplo.”
A delegada titular da delegacia, Maritza Haisi, nega os fatos e diz que a ordem é para que o servidor atenda toda vítima que procure o serviço. O problema, de acordo com ela, é que a delegacia não tem competência para investigar certos tipos de crime, como os de natureza patrimonial ou homicídios. “O decreto que criou a delegacia [da mulher] limitou a atuação dela, e, nesse caso, até fazemos o primeiro atendimento, mas o BO é encaminhado para a delegacia que trata daquele crime específico.”
A presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB, Sandra Lia Barwinski, diz que o fato de a delegacia ter sido criada por decreto em 1985, antes da Lei Maria da Penha (2006), realmente limita o seu poder de investigação, mas que é preciso esclarecer os servidores de que a autoridade policial tem a obrigação de receber toda e qualquer denúncia. (VP)
Entre as melhores do mundo
A Lei Maria da Penha, aprovada por 80% da população brasileira segundo pesquisa da Fundação Perseu Abramo em 2011, também é elogiada ao redor do mundo. Conforme relatório publicado em 2009 pelo Fundo de Desenvolvimento da Organização das Nações Unidas para a Mulher (Unifem), a legislação brasileira está entre as três melhores do mundo no quesito combate à violência contra a mulher. As outras duas são a Lei de Violência Doméstica da Mongólia e a Lei de Proteção Contra a Violência da Espanha, ambas aprovadas em 2004.Na capital, a única delegacia especializada vive sobrecarregada desde que a lei foi aprovada, em 2006. Segundo a delegada titular, Maritza Haisi, naquele ano foram instaurados 127 inquéritos, com uma equipe de 18 servidores. Em 2011, o efetivo aumentou para 36 profissionais, mas o número de inquéritos subiu de forma exponencial: havia 8 mil em trâmite.
No caso dos juizados especiais, a situação é similar. Existem 60 deles em todo o país, dois no Paraná (Curitiba e Londrina), embora a demanda seja até dez vezes maior. Nestes locais são apreciados pedidos importantes, como o da medida protetiva, que impede o agressor de chegar perto da vítima. “Os investimentos são incompatíveis com a grandeza da lei”, analisa a médica legista Maria Letícia Fagundes, autora do Projeto MaisMarias, que esclarece a população a respeito da lei.
Ela lembra que outro mecanismo importante de combate à violência praticamente inexiste no estado: as casas-abrigo, para onde são encaminhadas as vítimas que correm risco de morte. Hoje, no Paraná, há apenas um local deste tipo na capital e cinco no interior. No Brasil, existem 70.
“É muito pouco. Cerca de 50% das mulheres correm risco de vida e não poderiam voltar para suas casas”, diz. O resultado é desanimador sob qualquer prisma: ou as mulheres denunciam, voltam para casa e apanham (ou são mortas), ou desistem de denunciar, pois sabem que terão de encarar o companheiro. Ambas as atitudes enfraquecem a tão comemorada lei. Segundo o Mapa da Violência 2012, divulgado no mês passado, 68% dos casos de agressão à mulher ocorrem dentro de casa.
Não existem estatísticas confiáveis
A falta de dados sobre a violência contra a mulher também preocupa as autoridades. Se hoje o Brasil resolvesse de fato o problema da falta de orçamento para o setor, ainda assim não saberia por onde começar, já que as estatísticas inexistem ou são pouco confiáveis. “Sabemos que o Paraná é o terceiro estado onde mais morrem mulheres, mas não sabemos quem são elas, se fizeram boletim de ocorrência, se procuraram o serviço de proteção da Justiça e se foram atendidas”, explica a deputada federal Rosane Ferreira (PV-PR), uma das integrantes da CPMI.
Esse vazio estatístico também é apontado pelo deputado federal Dr. Rosinha (PT-PR), outro membro da comissão, como o grande desafio do Brasil na área. O parlamentar sentiu pessoalmente tal dificuldade: ao pedir dados para a CPMI, ouviu dos estados que as informações inexistiam ou não estavam tabuladas e disponíveis. “Ainda não concluímos os trabalhos, mas já percebemos que há um total desaparelhamento do Estado para cumprir a lei com eficácia. No país todo”, avalia Rosinha.
No próximo dia 25, os parlamentares visitarão órgãos que integram a rede de proteção à mulher no Paraná, como a Secretaria de Estado da Segurança Pública e o Tribunal de Justiça, além da Assembleia Legislativa do Paraná.
OAB vai propor melhorias no atendimento
Até o dia 25, um grupo de estudos da OAB no estado, coordenado pela advogada Sandra Lia Barwinski, deverá colocar em votação uma série de medidas que visam ao aprimoramento da infraestrutura de atendimento à mulher no Paraná. Serão discutidas em torno de 20 propostas, e o objetivo é que pelo menos dez sejam encaminhadas à CPMI que trata do tema no Congresso. O documento pretende focar em particularidades enfrentadas pelo Paraná na área. A primeira, de acordo com Sandra, é a ausência de um centro de reeducação do agressor, uma medida elogiada mundo afora, mas que ainda não é realidade em Curitiba.
Hoje, há iniciativas isoladas, como a do juizado especial da capital, que oferece oficinas, palestras e encontros com psicólogos para os agressores, além de conversas entre o casal para tentar entender o que leva à violência. Nenhuma, no entanto, é política de Estado. “São iniciativas individuais, como a da juíza, mas não foram formalizadas, institucionalizadas”, diz a advogada.
Outra medida urgente é a estruturação da Defensoria Pública no estado, com a consequente criação de um núcleo de atendimento à mulher vítima de agressão. Hoje, cerca de 80% das vítimas são das classes C, D e E, negras ou pardas e sem escolaridade nem renda para contratar um advogado, o que demonstra a urgência de tal iniciativa.
Por fim, o órgão recomendará que seja criado um núcleo da OAB dentro das delegacias, com um advogado pago pelo Estado, e que esteja presente no local 24 horas por dia para prestar esclarecimento sobre a lei às vítimas, além da presença do delegado durante os plantões, algo que hoje não ocorre, por falta de efetivo.
Vanessa Prateano/ Foto: Marcos Labanca/Gazeta do Povo.
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